Nanotecnologia contra o câncer

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O doutorando em Tecnologia Bioquímico-Farmacêutica da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, Valker Araújo Feitosa, em parceria com o IPT dentro do Programa Novos Talentos, está trabalhando em um projeto de nanoencapsulação de um agente antineoplásico, a miltefosina. O estudo, que teve início em novembro de 2014 e tem previsão de término em novembro de 2018, tem como objetivo a incorporação do fármaco em nanoestruturas poliméricas que permitam proteger o composto ativo em seu interior e evitar os efeitos colaterais causados tanto na administração por via parenteral (injeção) quanto por via oral.

A escolha pela miltefosina surgiu por conta de um desafio: trata-se de um fármaco anfifílico, ou seja, uma molécula cuja estrutura possui uma parte hidrofílica, que é solúvel em meio aquoso, e outra lipofílica, que é solúvel em lipídios.
Avaliação da atividade antitumoral das nanoestruturas em linhagens celulares...
Avaliação da atividade antitumoral das nanoestruturas em linhagens celulares…
“Para os fármacos que têm esta característica, há uma dificuldade a mais na encapsulação por conta dessa estrutura”, explica ele, que é graduado em Farmácia pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e tem como orientadora na USP a professora Carlota de Oliveira Rangel Yagui e, como coorientadora no IPT, a pesquisadora Natália Neto Pereira Cerize, do Núcleo de Bionanomanufatura.

A miltefosina é o principal representante de uma nova classe de antitumorais cuja ação terapêutica envolve a sua interação com a membrana celular, ao contrário da maioria dos fármacos utilizados para o tratamento do câncer, que atuam no material genético e têm baixa seletividade, ou seja, atuam tanto em células tumorais quanto nas sadias. “Os alquilfosfolipídeos, cuja miltefosina é um de seus representantes, não atuam no material genético, mas sim na membrana celular, pelo fato de ela ser anfifílica”, explica a orientadora Carlota.

Se por um lado esta característica de solubilidade tanto em água quanto em meio apolar (que não interage com a água) é positiva, por outro ela acaba causando alguns efeitos colaterais em sua administração – por exemplo, no caso de o medicamento ser injetável, as primeiras células que a miltefosina irá encontrar são as hemácias e, por conta da sua natureza anfifílica, ela pode provocar hemólise – ou seja, a destruição das hemácias pelo rompimento da membrana plasmática, resultando na liberação de hemoglobina. Caso a administração seja feita via oral, ela pode causar irritação gástrica.

Atualmente, por conta das restrições de administração, a miltefosina é aprovada apenas para uso no tratamento tópico de alguns tipos de cânceres, como metástases cutâneas de câncer de mama, e também para o tratamento da leishmaniose canina, cuja liberação no Brasil aconteceu em agosto pelo Ministério da Saúde e da Agricultura.

Em uma etapa inicial do projeto, outra aluna do programa de pós-graduação em Tecnologia Bioquímico-Farmacêutica, a mestranda Johanna Karina Valenzuela-Oses, também colaborou com o desenvolvimento da formulação de micelas poliméricas contendo miltefosina encapsulada. No trabalho de doutorado de Feitosa o desenvolvimento está sendo aprimorado e dois diferentes sistemas de produção para o fármaco nanoencapsulado estão em avaliação pelo pesquisador – algo inédito no Brasil em se tratando de miltefosina – para obter uma formulação que tenha viabilidade técnica e econômica de aplicação: a primeira é a técnica de secagem por atomização, também conhecida como spray-drying, que já é uma rota tradicional no IPT, e a segunda é a nebulização vibracional, ou nanospray-drying.

Para o estudo,
...tem como objetivo a incorporação do fármaco em nanoestruturas que permitam proteger o composto ativo e evitar os efeitos colaterais causados tanto na administração por via parenteral quanto oral.
…tem como objetivo a incorporação do fármaco em nanoestruturas que permitam proteger o composto ativo e evitar os efeitos colaterais causados tanto na administração por via parenteral quanto oral.
os principais polímeros empregados são da família de copolímeros Pluronic, que são biocompatíveis e de uso amplamente disseminado na indústria farmacêutica. Estes copolímeros são triblocos e tendem a se auto-organizarem em meio aquoso em micelas poliméricas (da ordem de 25 nanômetros), as quais são compostas pelo fármaco incorporado e pelo copolímero, com um núcleo hidrofóbico e o exterior hidrofílico.

“Os polímeros conferem estabilidade à estrutura porque eles apresentam massa molecular aumentada, o que resulta em um maior tempo de circulação das partículas na corrente sanguínea. Com isso, a liberação do fármaco é modificada”, diz Feitosa. Em outras palavras, as nanoestruturas entrariam em contato com as células saudáveis em um primeiro momento e o fármaco seria liberado aos poucos, preferencialmente no sítio tumoral, alcançando um efeito mais seletivo para as células cancerígenas sem comprometer as células sadias.

Para realizar o estudo, Feitosa conta com uma bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e um auxílio suplementar da Fundação de Apoio ao IPT (FIPT) no Programa Novos Talentos. Além disso, a aprovação de uma proposta dentro do ‘Projeto Fapesp: Auxilio regular com foco na miltefosina’ permitiu a compra de materiais e equipamentos para executar a pesquisa.

PARCERIA UNIVERSIDADE X ICT – Em seu dia a dia, Feitosa está lançando mão da infraestrutura laboratorial do Laboratório de Nanobiotecnologia Farmacêutica da USP e, principalmente, das competências de Carlota para a formulação e a produção das nanoestruturas que serão submetidas à caracterização biológica em relação ao potencial de hemólise, tanto do fármaco livre quanto encapsulado.

As atividades no Núcleo de Bionanomanufatura estão direcionadas às caracterizações físicas, físico-químicas e químicas das partículas e análise em microscópio eletrônico de varredura (MEV), assim como alguns testes de toxicidade, em equipamentos do Laboratório de Biotecnologia Industrial e do Laboratório de Processos Químicos e Tecnologia de Partículas do IPT.

Os resultados prévios indicaram que as micelas poliméricas conseguiram reduzir o potencial hemolítico da miltefosina e manter a atividade antitumoral. “Isso traz novas possibilidades, dentro da terapia do câncer, para o uso desta molécula – ela só pode ser aplicada hoje topicamente, mas in vitro ela é ativa frente a outras diversas linhagens tumorais”, afirma Carlota. “Fizemos alguns ensaios em linhagens tumorais de colo de útero e de pulmão, com a colaboração do Instituto de Química da USP, e obtivemos bons resultados. A incorporação da miltefosina nas nanoestruturas traria a possibilidade de ampliar o uso de um fármaco de atividade significativa que já é aprovado pelas agências regulatórias internacionais USA Food and Drug Administration (FDA) e European Medicines Agency (EMEA)”.

Por conta da autorização para o uso clínico, Natalia lembra que algumas etapas do processo de pesquisa já foram vencidas, mas ressalta a necessidade de validar a nova formulação em testes pré-clínicos e clínicos para chegar a uma etapa de comercialização.

Para ela, parcerias como essa são bastante ricas porque trazem toda a experiência da universidade em um fármaco ainda novo para o IPT – e os resultados significativos alcançados comprovam o alinhamento do laboratório da USP com as atividades do Núcleo de Bionanomanufatura: “O projeto ‘casa’ as atividades da produção de uma nanoestrutura, que está dentro da área de nanotecnologia, e da avaliação de uma produção das nanoestruturas, tanto sob a ótica de segurança biológica quanto de eficácia terapêutica”.

A equipe de pesquisadores lembra que, desde o início do projeto, as atenções se voltaram para trabalhar com polímeros e com rotas de encapsulação que fossem aplicáveis e escalonáveis para a indústria farmacêutica. “O IPT tem esta agilidade de interação com a empresa, de pensar a tecnologia em um grau de maturidade próximo às demandas do mercado e sob a ótica de propriedade intelectual. Muitas vezes as pesquisas ficam na prateleira porque não têm viabilidade técnico-econômica, apesar de terem um embasamento científico”, afirma Natalia.

A opinião é compartilhada por Carlota: “Para a universidade, é um benefício imenso realizar esta parceria não somente por conta da infraestrutura do IPT, mas principalmente pela sua competência e experiência na transposição e na visão de mercado que muitas vezes faltam para a universidade”.

Feitosa já havia tido uma experiência prévia no IPT como bolsista em um projeto Finep direcionado ao desenvolvimento de microdispositivos e do processo de encapsulação de ativos (hidrocortisona e eritromicina) para o tratamento de uma doença negligenciada, no caso a hanseníase, e o retorno ao Instituto está permitindo, segundo ele, “combinar a bagagem da formação acadêmica na universidade com a visão da ciência aplicada em um instituto de pesquisas”. Os bons resultados obtidos até agora trouxeram a oportunidade de um estágio no King’s College de Londres, onde Feitosa permanecerá por seis meses em 2017 para finalizar uma série de experimentos, principalmente de caracterização das estruturas e de atividade biológica.

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