Combate à leishmaniose

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Imagem ampliada 7.500 vezes mostra as bolsas (vacúolos) formados pelo protozoário L. amazonensis (vermelho), agente causador da leishmaniose cutânea, dentro de macrófago de camundongo (cinza). Créditos: Revista Pesquisa Fapesp
Imagem ampliada 7.500 vezes mostra as bolsas (vacúolos) formados pelo protozoário L. amazonensis (vermelho), agente causador da leishmaniose cutânea, dentro de macrófago de camundongo (cinza). Créditos: Revista Pesquisa Fapesp
De 700 mil a 1,2 milhão: gira em torno desses números os novos casos de leishmaniose tegumentar registrados anualmente no mundo, segundo a Drugs for Neglacted Diseases initiative (DNDi), concentrados sobretudo em uma lista de nove países da África e América do Sul – incluindo o Brasil. Um estudo realizado no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) busca o desenvolvimento de um novo medicamento para combate à doença, que se utiliza da tecnologia de nanocarreadores para elaborar um tratamento tópico, menos invasivo e mais eficiente aos pacientes, além de menos dispendioso aos serviços públicos de saúde.

Fruto dos resultados do Mestrado Profissional desenvolvido pela técnica Thais Aragão Horoiwa, do Laboratório de Processos Químicos e Tecnologia de Partículas do IPT, as pesquisas já renderam uma patente para o Instituto e, atualmente, a formulação inicial do medicamento passa por testes pré-clínicos no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP).

Acompanhe a seguir as etapas de desenvolvimento do fármaco, o que muda em caso de sucesso da produção do medicamento e por que, ainda que se trate de uma doença endêmica no Brasil, tão poucas são as iniciativas para melhorar o tratamento de suas vítimas.

A DOENÇA – Leishmaniose é o nome utilizado para identificar um conjunto de doenças infectocontagiosas causadas por protozoários do gênero Leishmania. Comuns em humanos, mas também em animais (especialmente cães), a doença pode se manifestar de diversas formas, sendo que na mais comum – chamada tegumentar ou cutânea –, o protozoário se instala nos macrófagos (células de defesa) da epiderme e faz com que o paciente desenvolva feridas na pele e mucosas.

Atualmente, no Brasil, o tratamento da doença é oferecido pelo SUS e feito de forma injetável. Em termos simples, o paciente recebe diariamente, por um período de 20 dias, injeções com doses de 10 a 20 mg de um medicamento comercialmente conhecido por Glucantime® (antimoniato de meglumina), única droga autorizada no Brasil para tratamento da doença. A aplicação é feita diretamente no local onde o protozoário está instalado – ou seja, na ferida. “O tratamento é extremamente doloroso e depende da internação do paciente para a aplicação do medicamento e controle dos efeitos colaterais, que são intensos. Dependendo da dosagem aplicada, a pessoa pode ir à óbito, porque a substância injetada é tóxica a órgãos vitais como rins, fígado e coração”, explica Thais.

Na prática isso significa três coisas. Primeiro: o tratamento é oneroso ao sistema de saúde, que tem uma série de gastos ao manter o paciente internado por muitos dias, tanto relacionados à mão de obra quanto a recursos. Segundo: muitos pacientes abandonam o tratamento na metade, o que pode gerar complicações – por exemplo, o desenvolvimento da doença em suas formas mais graves, como a leishmaniose visceral, que ataca os órgãos internos do corpo – e mantém o indivíduo como hospedeiro do parasita, que é transmitido por um mosquito. E terceiro: uma doença que em princípio não leva à morte pode ser complicada pelo uso do seu próprio remédio.

A TECNOLOGIA – A pesquisa desenvolvida por Thais visa a criação de um medicamento para uso tópico (pomada ou creme) que possa ser aplicado pelo próprio paciente e dispense a internação em hospitais, uma alternativa também menos dolorosa que a atual. A tecnologia é baseada no uso de nanocarreadores poliméricos coloidais, sistemas capazes de levar medicamentos diretamente até o local do organismo onde devem agir, construídos em uma escala de tamanho de 1 nanômetro – ou 1 bilionésimo de metro.

Imagem de microscopia eletrônica dos nanocarreadores poliméricos coloidais de maltodextrina contendo antimoniato de meglumina
Imagem de microscopia eletrônica dos nanocarreadores poliméricos coloidais de maltodextrina contendo antimoniato de meglumina
“Essas nanoestruturas são formadas por polímeros biodegradáveis que carregam, como uma cápsula, o medicamento até o foco da doença, ou seja, o protozoário hospedado na pele”, explica Thais. “O grande diferencial do projeto é o uso de um açúcar, a maltodextrina, para o carreamento do antimoniato de meglumina”.

Thais conta que a tecnologia funciona como uma espécie de “cavalo de Tróia”. Isso porque o protozoário, alojado na epiderme, apresenta receptores em sua parede celular que reconhecem moléculas de glicoconjugados produzidas a partir de açúcares recebidos pelas células. “O uso da maltodextrina faz com que o medicamento atinja preferencialmente as células infectadas, porque o colocamos dentro de uma molécula que o parasita necessita em seu metabolismo. Em tese, o açúcar iria preferencialmente para as células que o estão demandando mais”, explica a técnica.

Outra inovação do projeto está no fato de ela basear-se em uma dispersão inversa em que nanoestruturas hidrofílicas estão envoltas em um silicone biodegradável, já utilizado pela indústria farmacêutica em outros medicamentos. O silicone é biocompatível e um facilitador da interação do medicamento com a pele porque reduz a tensão superficial, melhorando a espalhabilidade e a permeabilidade dos componentes da formulação através das células epiteliais e também promovendo a entrega do fármaco em camadas mais profundas da pele.

A formulação inicial passou por dois testes principais no IPT: o de liberação e o de permeação cutânea. O primeiro comparou o perfil de liberação do fármaco encapsulado na pele com o fármaco livre, utilizado nas doses injetáveis do tratamento atual. Resultado: ao passo que o fármaco livre é liberado de uma só vez, tendo uma atuação por tempo limitado no organismo, o nanocarreador promove uma liberação sustentada, que cresce ao longo do tempo. “Isso pode indicar que, no caso do uso de uma pomada, por exemplo, o paciente poderia fazer um curativo e deixar o medicamento agir na ferida por um tempo mais prolongado, sem a necessidade de reaplicação recorrente da dose”, afirma a técnica.

O desafio no segundo teste era entender se o fármaco encapsulado e de forma tópica conseguiria passar pelo estrato córneo da pele, camada que recobre a epiderme (onde está o protozoário). Para tal, a formulação foi aplicada em uma membrana animal semelhante à pele humana. “O fármaco encapsulado não apenas penetra nas camadas mais profundas da pele, como se mantém mais concentrado do que o medicamento livre. Apesar de uma parte considerável ficar retida no estrato córneo, também consideramos o fato de que, quando a doença está instalada, observam-se feridas onde essa camada superior não está mais presente. Como o medicamento seria aplicado diretamente na epiderme, espera-se que a eficiência seja ainda maior”, avalia ela.

Segundo Thais, os ensaios de permeação cutânea também mostraram que o fármaco não chegaria à corrente sanguínea mesmo estando encapsulado em uma estrutura nanométrica, ficando retido preferencialmente nas camadas da pele. Em termos práticos, isso significa que a chance de haver efeitos colaterais é muito menor.

O CAMINHO – A formulação criada no IPT passa, agora, por testes preliminares no ICB-USP, cujo principal objetivo é avaliar a eficiência dos nanocarreadores contra o protozoário em animais. Embora o antimoniato de meglumina tenha ação efetiva comprovada no tratamento, é preciso entender como o sistema de nanocarreamento elaborado no IPT traz ganho em comparação com a terapêutica atual.

“Nessa fase, procuramos observar o efeito tóxico do composto diretamente contra o parasita in vitro”, explica Mauro Javier Cortez Veliz, pesquisador do Departamento de Parasitologia do ICB. “Inicialmente estamos trabalhando com a Leishmania amazonensis, causadora de dois tipos de leishmaniose cutânea, mas a ideia é realizar testes em diferentes espécies e entender a eficácia da droga em combatê-las”.

Testes de citotoxicidade, ou seja, que garantam que o medicamento não afetará de forma agressiva também as células saudáveis, são o último passo para comprovar a eficácia do fármaco. “Em caso de sucesso nos testes, a metodologia principal será a realização de testes em modelo animal, em que será possível comprovar efetivamente a eficácia do tratamento tópico através dos nanocarreadores coloidais. Analisaremos o curso de infecção e verificaremos a quantidade de parasita (carga parasitária) na lesão do animal após o tratamento”, explica Veliz.

A partir daí, a evolução dependeria, sobretudo, de uma parceria com alguma indústria farmacêutica – etapa em que seria possível melhorar a formulação inicial do medicamento, estudar a viabilidade financeira de sua produção e realizar testes finais em animais e humanos para a disponibilização do fármaco no mercado.

O “X” DA QUESTÃO – Embora a tecnologia seja promissora e cerca de 1 milhão de novos casos de leishmaniose cutânea sejam computados por ano no mundo, ainda assim o medicamento deve encontrar entraves para se tornar realidade no Brasil.

Isso porque a enfermidade faz parte do rol das chamadas doenças negligenciadas: tropicais, endêmicas, e concentradas em populações de baixa renda de países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento da Ásia, África e América Latina. Comuns em locais com maior dificuldade de acesso ao saneamento básico – onde o mosquito transmissor tem mais chances de se proliferar – e, portanto, em populações marginalizadas, de menor poder aquisitivo, são poucos os recursos destinados a pesquisas, e menor ainda o interesse das indústrias farmacêuticas em se arriscar a investir em medicamentos que podem não dar retornos financeiros satisfatórios.

Mosquito vetor da Leishmaniose (phlebotomine sandfly​). Créditos: Organização Mundial da Saúde
Mosquito vetor da Leishmaniose (phlebotomine sandfly​). Créditos: Organização Mundial da Saúde
Embora os últimos dados divulgados pelo Ministério da Saúde apontem uma redução da doença no Brasil nos últimos dez anos – foram 19.395 casos em 2015, 27% a menos do que em 2005 –, a frequência da doença em áreas remotas, também afastadas dos serviços de saúde como hospitais e clínicas, torna difícil estimar a verdadeira incidência da leishmaniose no país e no mundo. Pior: a inacessibilidade ao tratamento ou seu abandono por conta das dificuldades aumentam as chances de a doença se proliferar, uma vez o número de hospedeiros do parasita não diminui.

Presente no 6º Congresso Mundial em Leishmaniose realizado na Espanha em 2017, Veliz aponta ainda outros problemas relacionados à doença na atualidade. Em locais em conflito bélico, como Sudão e Síria, a precariedade das condições sanitárias tem causado um aumento dos casos de leishmaniose – e a situação descamba para um aumento de registros também em regiões não endêmicas, que recebem refugiados do conflito. No Brasil, o desmatamento e a urbanização também têm levado o foco da doença para os centros urbanos, uma vez que o número de hospedeiros aumenta nesses locais.

“Usamos medicamentos feitos há mais de 70 anos. O desenvolvimento de novas estratégias quimioterápicas, eficazes, menos tóxicas e de baixo custo, são prioridade em um cenário mundial de mais de 350 milhões de pessoas expostas ao risco de contrair a leishmaniose”, opina o pesquisador.

Se apenas melhorar as condições do doente ou o cenário da doença não bastam para a indústria, Thais aponta que o maior trunfo para o desenvolvimento do novo medicamento pode ser a própria forma de tratamento atual. Isso porque a longa internação, a disponibilidade de vagas nos postos de saúde e os recursos dispendidos para curar a leishmaniose, tanto com mão de obra quanto com medicamentos, podem tornar o tratamento tópico mais vantajoso financeiramente.

“Pensando em termos de processo, é provável que seja mais caro para a indústria farmacêutica produzir o novo medicamento baseado em nanotecnologia. Porém, em termos de políticas públicas, os gastos com a doença seriam drasticamente reduzidos. Programas governamentais que priorizem o desenvolvimento de alternativas terapêuticas para o tratamento de doenças negligenciadas podem incentivar a indústria a produzi-lo”, opina Thais.

Por último, a técnica chama atenção ainda para o fato de que se trata de uma doença complicada para a sociabilidade do paciente. “É importante lembrar que as feridas surgem inicialmente no local da picada do mosquito, geralmente áreas expostas do corpo, como membros e rosto. Como são lesões de aparência que remetem a doenças transmissíveis, mesmo não o sendo, é comum as pessoas sofrerem preconceito ou enfrentarem constrangimentos em espaços públicos. A leishmaniose não é somente um problema grave de saúde pública. Por tudo que envolve, é um problema sócio-econômico”, finaliza.

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